
“Indenização é compensação por alguma perda, algum dano. Ela visa à recompensa da vítima de dano, transferindo-lhe parte do patrimônio do causador do mal, a fim de restaurar o equilíbrio entre os agentes. Além disso, serve de punição ao infrator e de instrumento de prevenção contra novas condutas lesivas” (GRIFOS NOSSOS). Com essas linhas, uma das Varas do Trabalho da Barra Funda – São Paulo/SP inicia a fundamentação de uma sentença publicada recentemente, em que condenou os CORREIOS ao pagamento de uma indenização prevista em norma coletiva aos herdeiros de um de seus empregados. Infelizmente, ele faleceu de covid-19.
O nobre Magistrado que proferiu a sentença prossegue: “... constato que restou provado que o 'de cujus' adquiriu o coronavírus e faleceu em razão de suas complicações, conforme consta no item ‘Causa da Morte’ na certidão de óbito da parte autora (...). A COVID-19 pode ser caracterizada como doença do trabalho desde que seja comprovado que, no ambiente de trabalho, o trabalhador estava exposto a risco de contágio em razão da não observância das medidas de prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão do coronavírus SARS-CoV-2. (...) Assim, embora a COVID-19 não esteja elencada dentre as doenças casualmente relacionadas com os respectivos agentes ou fatores de risco, o próprio Regulamento da Previdência Social indica que a lista não é exaustiva, mas apenas exemplificativa...”
“Desse modo, tratando-se o coronavírus SARS-CoV-2 de microrganismo vivo e exercendo o trabalhador atividade em ambiente de trabalho no qual não se observa as medidas de prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da COVID-19 ou que o exponha a maior risco de contágio, a COVID-19 pode ser enquadrada como doença do trabalho. Saliento, ademais, que embora a pandemia da COVID-19 se enquadre no conceito de doença endêmica, atraindo a aplicação do artigo 20, § 1º, ‘d’, da Lei nº 8.213/1991, não há exclusão absoluta de nexo de causalidade, pois a parte final do mencionado dispositivo legal é claro ao excepcionar a situação daqueles trabalhadores expostos ou que tem contato direto com o coronavírus SARS-CoV-2”. O parágrafo em destaque não precisa de maiores comentários.
O ilustre Julgador destaca ainda que o meio-ambiente de trabalho deve ter protocolos sanitários eficazes para conter a proliferação do vírus da covid-19. Caso contrário, a doença pode ser considerada laboral por equiparação: “... portanto, no caso dos empregados expostos ou que têm contato direto com o coronavírus SARS-CoV-2, em razão de estar em contato com pessoas contaminadas e pelas condições de trabalho ou de não serem observadas as medidas de prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão do coronavírus SARS-CoV-2, a COVID-19 poderá ser classificada como doença do trabalho. Diante da decisão do plenário do STF nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6342, 6344, 6346, 6348, 6349, 6352 e 6354, a qual suspendeu a eficácia do artigo 29 da MP nº 927/2020, bem como do princípio da aptidão para a prova e da distribuição dinâmica do ônus da prova, nos termos do artigo 818, II, da CLT, cabe ao empregador comprovar que adotou todas as medidas gerais e específicas daquela atividade para prevenção ao contágio do coronavírus SARS-CoV-2...”
O nobre Juiz que redigiu a sentença demonstra ter se atentado ao contundente depoimento da única testemunha ouvida em juízo. Ele expõe de forma explícita o meio-ambiente do trabalho em que o empregado falecido prestava serviços à empregadora antes de contrair covid-19 e, infelizmente, vir a óbito: “... da análise da prova oral produzida, tem-se o depoimento da única testemunha ouvida nos autos, convidada pela parte reclamante, que trabalha para a reclamada (...) desde 1994, que declarou em Juízo: ‘que trabalhava com o de cujus no período noturno e no setor de triagem; que o depoente trabalhava próximo às mesas de triagem; que o depoente trabalhava com pesquisa de objetos, pois tinha restrições médicas em razão de problemas no ombro e coluna; que o de cujus trabalhava, meio período, na triagem, e meio período em outros lugares que já não ficavam próximos ao trabalho do depoente; que no começo da pandemia, entre março e julho/agosto de 2020, não via quase nada sendo feito de providências de cuidados sanitários sendo tomadas; que tiveram que pedir ao sindicato para que tomasse providências, pedindo, por meio de liminar, que a reclamada tomasse providências e desinfectasse o setor e para tanto ficassem afastados 15 dias; que todos se trocavam no mesmo vestiários, inclusive quem estava doente, como o reclamante; que a reclamada não desinfectou o setor e ao retornarem dos quinze dias, estava na mesma situação; (...) que nunca foi feita medição de temperatura dos trabalhadores; que os funcionários infectados iam trabalhar e passavam a doença para todos, sendo que a maioria não sabia que estava infectado, pois os sintomas levavam uns dias para aparecer; que no início, a reclamada não fornecia máscaras; que passaram a fornecer máscaras no final de maio, isso após a morte de alguns trabalhadores como o de cujus; que o depoente era uma das pessoas que levava quem estava doente ao médico e por volta de maio apresentou sintomas de covid; que após isso passaram a fornecer máscaras, mas em pouca quantidade; que o caso do de cujus foi um dos primeiros; que a reclamada não fornecia álcool gel, pois não tinha aonde comprar naquele começo de pandemia; (...) que os equipamentos no setor de triagem são compartilhados, citando os equipamentos hidraulicos que levantam as cargas, carrinhos que transferem as cargas, caixetas, maquinários como computadores; que não eram feitas limpeza ou desinfecção desses equipamentos; que neste setor, entre funcionários e terceirizados, havia 130 pessoas por turno, havendo um total de 3 turnos; que se tratava de um galpão e a cada meio período faziam a troca para outro local no mesmo galpão;. que quando o de cujus ficou doente havia apenas avisos nos elevadores de cuidados, mas estes não se cumpriam, pois tudo estava difícil naquela época; que não sabe dizer ao certo se quando o reclamante foi diagnosticado com covid permaneceu trabalhando, apenas se recorda que antes dele ser internado, ele estava afastado por ordem médica e passou por dois hospitais; (...) que a liminar determinava afastamento dos funcionários para desinfecção do setor, mas a reclamada não cumpriu o que foi determinado quanto à desinfecção; que a reclamada não parou as atividades e tampouco fez a desinfecção; que parte das pessoas do setor em geral ficou com medo de cumprir a liminar e não se afastou’; (...)”.
E o nobre Julgador prossegue, expondo o que restou comprovado com o depoimento da testemunha acima destacado: “... do depoimento da testemunha acima extrai-se que restou provado que entre março e julho/agosto de 2020 a reclamada não tomava as medidas de controle e prevenção necessárias; que não havia aferição de temperatura dos empregados; que não havia desinfecção dos locais de trabalho após algum trabalhador ser contaminado pelo coronavírus; que nos equipamentos de trabalho são compartilhados e não havia limpeza ou desinfecção desses; que não havia fornecimento suficiente dos equipamentos de saúde e proteção no início da pandemia, como máscaras e álcool em gel e, além de tudo, não se pode ignorar a existência de risco exacerbado em razão de existir um número elevado de trabalhadores no local...”
As demais provas juntadas aos autos também não foram negligenciadas no momento em que o nobre Magistrado proferiu a sentença: “... compulsando a prova documental anexada aos autos, verifico que, após o falecimento do ‘de cujus’, houve a distribuição de Ação Civil Coletiva do Sindicato em face da ré, na qual foi determinada a realização de perícia técnica na unidade, local de trabalho do ‘de cujus’, que concluiu que a reclamada não observava as regras sanitárias necessárias para evitar o contágio por COVID-19, que o local de trabalho apresentava grandes riscos para contágio por Covid-19, bem como que não foram realizados exames em todos os empregados com suspeita de Covid. O laudo pericial constatou, ainda, que como não há posto de trabalho fixo, a ré não tem como controlar com quem um funcionário infectado teve contato no ambiente de trabalho, bem como que ocorreram vários casos de contaminação na reclamada, diante do elevado número de empregados. Ainda, a perita constatou que a limpeza realizada no local não era adequada e suficiente para desinfecção e mitigação da disseminação do Covid-19, bem como que os funcionários não foram adequadamente orientados sobre os protocolos de mitigação dos riscos e disseminação do vírus...”
O Julgador de escol ressalta ainda o fato de que, mesmo posteriormente à morte do empregado, a empregadora divulgou protocolos sanitários. Que, na prática, não foram implantados ou cumpridos: “... sabe-se que a reclamada, posteriormente, apresentou Protocolo de Medidas de Prevenção ao Covid-19, todavia, embora a ré tenha instituído alguns protocolos de medidas de contaminação e de limpeza, restou constatado que as medidas adotadas foram insuficientes, não sendo implantadas e cumpridas...”
E, por isso, faz constar da sentença tal fundamentação, de cunho declaratório: “... desse modo, diante das provas constantes dos autos, verifico que a contaminação pelo Covid-19 do empregado (espólio), ainda que por um nexo causal presumido, raciocínio que se impõe ao caso em tela, possui relação com a atividade laborativa. Assim, concluo pela existência do nexo causal entre as atividades desenvolvidas pelo ‘'de cujus’ para a reclamada e o dano quanto à doença adquirida no ambiente de trabalho, nos termos do art. 20, inciso I, da Lei nº 8.213/91, eis que a doença resultou das condições especiais nas quais o trabalho era executado...”
Especificamente sobre a culpa da empregadora, o Magistrado que proferiu a sentença nos ensinou: “... assim, as provas constantes dos autos demonstram que o ''de cujus' desenvolvia suas funções em ambiente de trabalho sem a observância adequada das medidas de prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão do coronavírus SARS-CoV-2. Portanto, o que se restou demonstrado no laudo pericial realizado no local de trabalho do falecido (...) é que a reclamada foi negligente (omissa), pois não adotou as medidas necessárias de modo a prevenir, controlar e mitigar os riscos de transmissão do coronavírus e resultando na conclusão de que a contaminação do reclamante ocorreu pelo trabalho, patologia que por fim o levou a óbito. Assim, não tendo a empresa diligenciado em prol da saúde e da segurança dos seus empregados, com a eliminação dos riscos de transmissão do coronavírus àqueles que lhe prestam serviços, tanto que o evento danoso se concretizou cabalmente, tenho a reclamada como responsável pelo mal sofrido pelo ex-laborista, restando reconhecida sua culpa e responsabilidade pelo infortúnio...” (GRIFOS NOSSOS)
E sobre a indenização prevista na norma vigente na época do óbito do empregado, o notável Julgador lançou na sentença que proferiu: “... da interpretação da referida cláusula constata-se que a indenização é devida no caso de morte decorrente de acidente de trabalho como uma das hipóteses para seu pagamento (...). Assim, diante da constatação da doença ocupacional ou do acidente do trabalho por equiparação ocorrido com o 'de cujus', a parte reclamante faz jus à referida indenização...”
Após perfilhar todos esses fundamentos, o dispositivo da sentença da lavra do notável Julgador não poderia ser diferente: “... desse modo, julgo procedente o pedido de pagamento da indenização prevista na cláusula 76ª do Dissídio Coletivo de Greve 2019-2021 (...), observada a correção monetária e os juros a partir do falecimento do 'de cujus’”.
A empregadora ainda pode recorrer dessa decisão.
Saiba mais aqui.
Corrêa, Rocha e Valente Advogados Associados – Direito de ecetista para ecetista.
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